Notícias do Mequetrefe

 
O centenário lampião da Ponte.

 

Quase dois meses depois de sua saída aqui de São José, apreciando umas poucas coisas nossas e esconjurando outras muitas, Mequetrefe, aquele meu colega de ginásio, deu o ar de sua graça.  Nesse período fiquei surpreso com o número de pessoas que me perguntaram sobre ele, a maioria talvez esperando um segundo artigo com as estripulias amorosas do octogenário meio descabeçado.

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Recebi dele uma carta, isso mesmo, uma carta manuscrita, com Ilmo. Sr. antes de meu nome e sem CEP nem remetente.

Quer dizer que a abri de pura curiosidade, desde o carimbo do correio: Ourinhos – SP, 4 de novembro de 2013. A cidade onde ele começou a escrevê-la é Toledo, no Paraná, a 20 de outubro; a continuação,  de Umuarama (23/10), de Maringá (27/10) e  a conclusão de Cornélio Procópio (30/10). Assim, percorreu o norte do Paraná, fez suas observações sobre cada uma delas e entrou em São Paulo por Ourinhos. Ainda bem que ele não se esqueceu de postá-la.

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Dali para frente, seu roteiro será puro segredo para mim e até para ele próprio, sempre sujeito a resoluções repentinas e ao estado de saúde de seu carro, um possante Opala, sabe-se lá de que ano.

Sua letra é legível, porque em sua longa carreira de policial federal terá tido ocasião de lavrar ocorrências e de registrar flagrantes. O que mais me espantou foram as palavras que ele acentuou,   das que perderam o sinal gráfico lá por 1970: êle, êste, nôvo,  além de deslizes como poude (pôde) e paralizar (paralisar).  Levando-se em conta a idade e a falta de hábito na  escrita e leitura do Mequetrefe, até que sua situação não é grave. Há gente que, apesar da obrigação funcional de escrever com simplicidade e correção, comete  crimes de lesa-língua com mais frequência.

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Depois de se referir com boas palavras ao nosso reencontro,  Mequetrefe me passou brevíssimas notícias suas e de seus. Continua afastado  dos filhos e rompido de vez com a mulher, “megera que não quero ver nem pintada de ouro”. Não tem a mínima ideia  de onde estará no Natal e no ano-novo.

Em seguida desfiou o rosário de alguns elogios e de mais críticas à nossa cidade, a nossos valores, a nossos hábitos.

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Decididamente não se conformou com nossa paradeira, principalmente à noite, nos dias comuns da semana. “Onde se enfiou, pergunta ele, aquele povão que animava a praça, frequentava o Rio Pardo e a Associação, batia papo com os vizinhos, sentava-se em frente às portas das casas, no tempo do verão?”

É, respondo-lhe agora, o povão que fazia isso, que praticava desses hábitos tão salutares, está grudado ao televisor, não quer visitas em nenhuma hora, muito menos quando a novela está esquentando e próxima do final quase sempre previsível, mas nem por isso sem alto ibope, principalmente se houver arranca-rabos entre mulheres ou entre personagens simpáticos e antipáticos à opinião  pública. O telespectador é chegadinho a uma boa pancadaria.

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Faz anos que nossas praças são desertos noturnos, posse descuidada de má gente, que tem prazer em riscar, quebrar, poluir. Mas isso não é fenômeno local e sim nacional. Não existe povo mais noveleiro do que o nosso. Talvez nem mais rabiscador. Daí o esvaziamento das cidades à noite, daí também a perda do hábito de ir ao cinema. Com os avanços tecnológicos da televisão, as telas enormes e  os canais em alta definição, seria mesmo um contrassenso, aqui e em qualquer outro lugar, você trocar a segurança de sua casa, os confortos de sua poltrona e do seu controle remoto para enfrentar os inconvenientes do cinema, com gente  falando alto, metendo os pés nas poltronas, comendo pipoca e arrotando coca-cola.

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“Por que, insiste o Mequetrefe,  desapareceram os fortes estabelecimentos tradicionais da cidade, que davam empregos, que traziam o progresso e o dinheiro que geravam ficava aqui mesmo na cidade?”

Ele cita alguns exemplos dessas  perdas e fechamentos que eu acho melhor não publicar.

É muito mais fácil formular uma questão dessa amplitude do que encontrar respostas adequadas. Como posso eu explicar o desaparecimento de potências familiares, de empresas tradicionais e poderosas,  a perda da ferrovia, a falta de empenho coletivo  na duplicação da principal rodovia?

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Lembro, sem identificar, o colapso de grande casa comercial de que eu adquiri meu primeiro carro. Como sou daquele superado tipo de pessoa que só compra se já tiver disponível o dinheiro, lá  fui  negociar o preço à vista. O sócio-vendedor, meu amigo, me convenceu de que eu devia entrar na prestação. Em vez de morrer com oitocentos e dez mil cruzeiros numa pancada, eu deveria pagar oitocentos e quarenta e cinco mil, em três anos. Fiz o negócio proposto, isso em 1962, quando ainda não havia correção monetária. Em 1963, o dragão da inflação começou a soltar fogo pelas ventas. Em 64, nem se diga. Quando eu ia pagar as últimas prestações de meu Dauphine preto, o valor delas era de morrer de rir. Resultado triste: a grande casa comercial faliu, tragada pelas suas desvalorizadas promissórias sem correção.

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As coisas que aqui aconteceram são por vezes o reflexo da omissão dos bons, em todos os sentidos. Por que construir aqui, se o boom imobiliário está em São Paulo, em Campinas? Por que fabricar aqui, se outras cidades, até há pouco tempo uns vilarejos sem maior expressão,  hoje se transformaram em polos industriais, bem servidos  de transporte e próximos dos grandes centros consumidores?

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Quanta gente  honesta, bem preparada, nem pensa em entrar para a vida pública? E sabe bem por quê. Um cidadão de boas intenções e melhores ideias se mete a candidato.  As virtudes de seu currículo são facilmente soterradas pelo prestígio do chefete do bairro, pelo influxo do líder religioso radical, pelo radialista demagogo, pelo esportista bem-falante, pelo funcionário que manobra conforme sua conveniência o atendimento a pessoas carentes. O resultado não pode ser diferente do que aí está, com gente eleita até por brincadeira  de mau gosto de patrocinadores abonados  e sem nenhum compromisso com a cidade.

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De pais ricos, filhos nobres e netos pobres,  a cidade tem muitos exemplos. A garra do imigrante  foi passada aos filhos, que deram boa vida aos netos, que nem sempre exigiram  continuidade do esforço aos bisnetos, que pouco souberam das durezas do labor  e por isso mesmo nada, ou quase nada,  nesse sentido cobraram aos trinetos.

O mesmo vale para a aristocracia rural. Dizem com certa graça e muita verdade que em nossa cidade a reforma agrária foi feita na cama. O fazendão de mil alqueires do final  do século XIX hoje está retalhado entre tantos herdeiros ou vendido como sítio, chácara, bairro, loteamento de área de expansão  urbana.

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Como deve ter percebido o paciencioso leitor, a carta do Mequetrefe apenas suscitou questões sérias. Ele não contou nenhuma aventura recente, mesmo porque, sendo nós da mesma idade, ele sabe que não dá para inventar lorotas sentimentais nem lances amorosos. Já ficamos felizes da vida porque temos boa cabeça, pequenos males e ainda controlamos com dignidade nossas funções básicas.

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Até um dia, amigo Mequetrefe.

 

30/11/2013
emelauria@uol.com.br

 

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