O banco dos velhos

 
Remanso do rio

 

Ao contrário do que alguns pensam, não existe um só local específico de aposentados em nossa praça central. Existem, isto sim, diversos bancos de aposentados, mas não é livre o acesso a nenhum deles, assim como uma mesma pessoa não pode estar ligada a mais de uma turma de amigos.

Complicado? Nem tanto. Vencido injustificado pudor quanto ao exercício explícito da vagabundagem, frequento, já faz alguns anos, o banco situado bem defronte ao prédio da extinta Caixa Econômica Estadual, hoje absorvida pelo Banco do Brasil. Apenas de passagem e por cortesia, vez por outra paro e  converso com o pessoal titular de outro banco situado numa rua interna do jardim público. Sei que ali não devo me demorar e muito menos ocupar o lugar de um dos fregueses efetivos que chegue logo depois. Outros grupos se reúnem nos assentos da pérgula ou se abrigam à sombra da grande figueira, a mais convidativa das árvores de toda a praça.

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No banco a que estou vinculado, há um pessoal que chega cedo e vai embora logo depois. Talvez eu nem conheça todos esses madrugadores apressados. Ficam por ali das oito às nove, por exemplo. Depois saem, vão cuidar da vida. Há os que chegam cedo e permanecem ali um tempão, assim como o frequentam pessoas que reparam muito naqueles, como eu, que não aparecem todos os dias, chegam atrasados ou saem adiantados. Uns indisciplinados, enfim. Sempre somos criticados. Para a maioria do grupo, o momento ideal de papear é das nove e meia às onze. Conheço uns poucos que levam isso muito a sério e se queixam abertamente dos relapsos descumpridores de horários.

Quando alguém não comparece por dias seguidos, é gentilmente  compelido no retorno a justificar a ausência, servindo qualquer desculpa, esfarrapada ou não. Afinal, o que se quer é apenas dar a ele a certeza  de que sua falta foi notada, além de se inteirar se o ausente   não está com problema sério em si mesmo ou na família. Sim, porque velho tem o péssimo costume de cada vez mais ficar doente, de ter moléstia na família, de perder parentes ou amigos de longa data e até de morrer.

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Nos últimos anos, o nosso banco tem sofrido pesadas perdas, quase sempre causadas pela mesma circunstância agravante: o avanço dos anos.

Embora não exista idade mínima para alguém se agregar ao grupo, nossos assuntos não são naturalmente de  interesse de cinquentões ou sessentões. O ideal, mesmo, é que o sujeito já passe dos setenta ou até assuma que  está beirando os oitenta. Desconheço frequentador que já tenha emplacado os noventa aninhos. Um dia destes, estávamos lá, aboletados em dois bancos, cinco fregueses permanentes: comprovei uma realidade que nem sei se era motivo de júbilo – nossas idades somavam quatrocentos e vinte anos. O caçula entrou com justos oitenta; eu e um outro, com  oitenta e três cada um; mais dois com  oitenta e sete!  Todos com aceitável aspecto, achaques controlados, frases concatenadas e memória sem lapsos de envergonhar. Não é fácil reunir tantos velhinhos saudáveis, ou quase.

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Difícil perceber os sinais de decrepitude mental de alguém do grupo. Mais comum observar os da decadência física, como dificuldade para sentar ou levantar, trocas de passos com firmeza diminuída, respiração opressa. Uma bengala, um aparelhinho de ouvido, óculos mais possantes  caberiam muito bem no equipamento de muitos de nós. Há casos de ausências por tristíssimas razões, como a do companheiro que se ajeitava com seus vinte por cento de visão, de repente reduzida a menos da metade –  o que lhe vem tirando a possibilidade de se movimentar sem acompanhante pela cidade.

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Um caso que pode ser tratado tanto  com humor quanto com  pesar é o fato verídico ocorrido com um dos mais velhos de nosso grupo, falecido logo depois. Se há coisa que velhinhos motoristas esquecem com certa facilidade é o local exato onde estacionaram seus  veículos. Afinal, arranjar vaga é problema que se agrava dia por dia, chegando ao cúmulo aos sábados, com a praça atopetada.  Pois o protagonista da história que agora relato de repente nem sabia se tinha vindo para o centro da cidade em condução própria, ou a pé, ou de carona com amigo. Foi, portanto, com agradável surpresa que ele deu de cara com sua caminhonete, estacionada logo ali. E as chaves? Onde teria posto as chaves? Procura que procura, e nada. Revista todos os bolsos. Em vão. Mas não pode deixar a caminhonete abandonada na praça. Toma decisão extrema: telefona para o chaveiro de sua confiança. Ele chega logo e se põe a abrir a porta do veículo, coisa de poucos minutos. Faz uma ligação direta e tem a gentileza de ir dirigindo  até a garagem do dono. Chegados lá, a surpresa: dentro da garagem, estava a caminhonete, igualzinha àquela encontrada na praça! Deixo ao meu leitor o prazer de dar o melhor fim a essa curiosa história verdadeira. Só acrescento que seu protagonista meio distraído acabou morrendo logo depois, ao se estatelar ao pé de traiçoeira escada.

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De que falam os frequentadores desses amáveis bancos de velhos? De tudo, do Brasil, da cidade, pouco   de certas mazelas pessoais, de desacordos familiares, de incidentes desimportantes para os outros. Fala-se até de mulheres, sem maiores doses de malícia ou sensualismo. Muitos apreciam as belezas de algumas passantes, comentam dotes anatômicos, quase sempre sem usar vocabulário agressivo ou desrespeitoso, tendendo a dar aos comentários um toque surreal de impossibilidades, como um cego que se dispusesse a descrever as belezas do crepúsculo. Há os que nada falam, mas prestam uma atenção daquelas... Ah, quanta saudade do passado vigoroso!

Há exceções, evidentes exceções nessas observações quase teóricas sobre a beleza feminina. Sei da fixação de um frequentador, viúvo e dos menos velhos,  que acha uma das mulheres que por ali passam uma verdadeira obra-prima da natureza. Sabe que todos os dias ela vem do bairro no ônibus circular de certo horário. Minutos antes da previsão de chegada, ele se posta em seu privilegiado local de observação e a acompanha avidamente com os olhos, até que a gentil figura (que jamais cumprimenta alguém ou  sequer  olha para os lados) se perca na esquina da praça, rumo ao seu  cansativo trabalho de todos os dias. Talvez ela nem tenha ainda percebido os lânguidos olhares de seu secreto admirador.

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Ultimamente aconteceram novidades em nossos bancos. É que duas mulheres, conhecidas nossas e já idade acima de qualquer suspeita, encheram-se de coragem em diferentes ocasiões e  resolveram aceitar convite que fizemos por mera formalidade: não é que as duas gostaram de sentar ali? Deram a entender que  apareceriam de vez em quando. Nenhum de nós teve coragem de dizer que elas não podiam, mas também é verdade que nenhum de nós as incentivou. Afinal, nossas reuniões primam pela informalidade e não raro o nível vocabular cai assustadoramente, seja por causa de uma passante superiormente dotada, seja ainda pelo mais inesperado desacordo político, futebolístico, televisivo. Não, é melhor que não, que sejamos ao menos um pouco parecidos com os radicais  integrantes do Clube do Bolinha.

 

28/11/2015
emelauria@uol.com.br

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