Duas lembranças e uma leitura

 

De arma em punho

Não sei onde termina a recordação e começa  a reprodução de relatos alheios. Só sei que a memória  daquele incidente varou décadas e se classificou como das mais perigosas histórias familiares. Poucos sobreviventes há para confirmar o ocorrido, seja em sua face verdadeira, seja  nas pitadas de imaginação acrescentadas por um e por outro.

Às vezes me vejo com o revólver na mão, colocando  o cano sob o queixo, como numa pose de reflexão. Outras, vejo-me do outro lado da rua, observando um menino – que sou eu – segurando o revólver de cano longuíssimo e tentando puxar seu duro gatilho.

Três anos de idade? Talvez quatro. A casa onde morávamos está lá até hoje, igualzinha em seu aspecto exterior: a primeira do lado direito da Rua do Paraíso, confluindo para a José Teodoro. Tudo ali havia pertencido a meu avô materno César Bertocco, tanto que seu negócio – armazém de secos e molhados, como se dizia, – era  logo em frente. Na casa  fronteiriça ao armazém morava minha tinha Zaíra. Na soleira de sua porta de entrada é que eu, posto em sossego, estava sentado, o revólver na mão.

Quando minha mãe, até seus setenta e tantos anos, relatava mais uma vez para quem quisesse ouvir aquele emocionante episódio de 1935 ou 36, eu, homem feito, já avô, podia sentir os resquícios de sua renovada angústia, a culpa que jogava sobre si mesma por ter deixado ao alcance do ainda filho único a arma de fogo do marido. Enquanto ela contava, com riqueza dramática de pormenores, como eu tinha podido retirar de um criado-mudo o revólver espanhol marca Tanque, calibre 32, vinha-me  à tona da memória não só o criado-mudo, mas o cheiro dele, uma longa  impregnação de cigarros Liberty  (ovais) fumados até na cama por meu pai. Vejo-me  abrindo a gavetinha, por descuido deixada sem a segurança da chave. Admiro o brilho metálico e frio da arma, simulo tiros e depois ganho a rua, para me alojar no degrauzinho da tal porta de entrada.

Em certo momento, vejo e ouço mãe falando comigo o mais calmo e pausado que podia, até me arrancar a arma da mão e depois me abraçar com os nervos em frangalhos e chorar, chorar, chorar muito, ao me saber livre de qualquer perigo.

Daquele longínquo incidente, tão lembrado por anos na crônica familiar, como se fosse fácil a um garotinho de três ou quatro anos  ter força suficiente para movimentar gatilho tão pesado, o que ficou em mim?  Imagem mental ou ficcional? Não sei: as personagens que testemunham o ocorrido já morreram. O revólver está comigo, bem guardado, ao longo dos anos inacessível a filhos e netos. O criado-mudo, bem cuidado, compõe o mobiliário do quarto onde minha mãe morreu aos noventa e nove. Meus descendentes talvez tenham ouvido um relato dela, quando sua memória já se esgarçava. Nenhum deles me pediu confirmação ou retificação.

O incidente acabará morrendo comigo.

 

Texto devolvido

Belamente formatado, com letras enfeitadas e um colorido anjinho barroco, recebo de aluna do Curso de Letras de nossa Faculdade de Filosofia, turma de 1977, um texto que, ela  garante, ofereci manuscrito a cada um dos formandos, no dia da colação de grau.

A remetente recorda-se das aulas, dos professores e me pergunta de cada um deles. De muitos nada sei, de outros só sei que se foram, de poucos posso dizer que gozam do merecido ócio com dignidade. Também indaga se me ficou  na memória alguma coisa daqueles recuados tempos.

Certo que ficou, mas de outro modo. A visão do professor é diferente da perspectiva dos alunos, especialmente em épocas de adeuses e separações. O professor é como a margem do rio, que vê passar as coisas. Alunos são essas coisas que passam, cada um com sua diferente grandeza e brilho,  marcando mais ou menos quem fica.

E me revela algo que chega a me espantar: ela se aposentou recentemente como professora de Português da rede estadual!  Nada como o tempo para passar, resumiu bem o poetinha.

Mas vamos ao texto, que ela assegura  ser meu:

 

Do tempo e do seu fluir

 Que é o instante vivido

Senão matéria fluida e sem história,

Tal qual o ar e a luz?

(E, no entanto, vence à morte, leva à ressurreição.)

Considerai que viver é dominar o tempo.

Consolai-vos: a impressão dos vossos dedos,

Ora ausentes,

Guardada na folha que tocastes,

Comprova quanto o passado minuto

Ainda vos pertence.

 

Tem lá sua beleza melancólica, não?

 

Trabalho de Hércules

Leio, interessadíssimo,  as quinhentas e tantas páginas de Morte no Paraíso – a tragédia de Stefan Zweig,  3.ª edição ampliada, Rio de Janeiro, Rocco, 2004.  Um trabalho de Hércules pela seriedade da pesquisa, pelo material iconográfico reunido, pelas conclusões tiradas.

Autor, meu novo velho amigo (palavras dele, na dedicatória) Alberto Dines, crítico de cinema e roteirista, diretor de jornais e revistas no Rio, em São Paulo e em Lisboa, criador do “Observatório da Imprensa”, que esteve recentemente na cidade chefiando equipe de reportagem da TV Brasil, a propósito do centenário da morte de Euclides da Cunha.

Zweig, escritor austríaco, teve uma vida contraditória como judeu e intelectual antinazista.Escolheu um tipo de morte que sempre causa impacto –  o suicídio. Pôs fim à vida, em pacto com sua mulher, em Petrópolis, em 1942.

Meu pai, que tinha um salão de beleza, assinava jornais e revistas, principalmente para distração de suas clientes, mas eu os lia todos, apesar da tenra idade. Fiquei freguês do Diário de S. Paulo, do Cruzeiro,  da Cigarra, de Vamos ler!  Foi ali que começou minha intimidade com a leitura. A foto do casal, encontrado morto por envenenamento, tornou-se inesquecível para mim. E agora a reencontro encartada no livro.

Uns dez anos depois, meu primo muito querido Odilon Ribeiro de Sousa, filho

da tia Zaíra, que aparece lá no primeiro tópico, coloca-me à disposição três livros de Zweig – Uma consciência contra a violência, Brasil – país do futuro e Maria Antonieta.

Relato essas miudezas para mostrar que meu interesse por Zweig era de longa data, tudo agora acrescido de outra triste circunstância: quarenta e tantos anos  depois, meu primo Odilon também cometia suicídio.

Releio  a Declaração de Stefan Zweig, datada de Petrópolis, a 22 de fevereiro de 1942:

Antes de deixar a vida por vontade própria, com a mente lúcida, imponho-me esta última obrigação: dar um carinhoso agradecimento a este maravilhoso país, o Brasil, que propiciou,  a mim e à minha obra, tão gentil e hospitaleira guarida. A cada dia aprendi a amar este país, mais e mais. Em parte alguma eu poderia reconstruir a minha vida agora que o mundo da minha língua está perdido e o meu lar espiritual, a Europa, autodestruído.

Depois dos 60 anos são necessárias forças incomuns para começar tudo de novo. Aquelas que possuo foram  exauridas nestes longos anos de desamparadas peregrinações.

Assim, em boa hora e conduta ereta, achei melhor concluir uma vida na qual o labor intelectual foi a mais pura alegria e a liberdade pessoal o mais precioso bem sobre a terra.

Saúdo a todos os meus amigos. Que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite. Eu, demasiado impaciente, vou-me antes.

           

Meu primo não deixou bilhete de suicida redigido com tanta lucidez. Apenas pede que lhe perdoem o gesto, porque já não podia vencer sua enorme solidão, agravada pela surdez e pela estrondosa cachoeira na cabeça, que lhe tornava insuportável a vida.

 

 

28/03/2009
(emelauria@uol.com.br)

 

Voltar