Da escrita e seus arredores

 
Aqui em casa.

 

Quem escreve, apesar de pensar fundamentalmente em si mesmo, quer ser lido. E é bom saber que todas as vezes que se escreve com a emoção mais à mostra, o retorno é imediato. Isso anima e dá justificativas para se persistir.

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"Alguns dos versos livres que correm por aí, bem que deveriam ser presos!" - esta frase causou espécie há um século. Hoje quase ninguém sabe sequer o que é verso, quanto mais livre. Parece que no mundo agora em transformação, a poesia deixou de ser necessária.

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Arte da palavra. Arte da dança. Arte de representar. Só existe uma arte irrecusavelmente  importante: viver. E é difícil esta arte de viver, porque não admite cópias nem imitações. Cada qual faz seu caminho, sem direito a retornos.

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Assim como tantas pessoas não conseguem acompanhar um pensamento de mais profundidade, também a boa música  não alcança a tantos,  porque ela  não passa de um profundo pensamento sonoro. Ao invés de se abismar na musicalidade, a grande maioria se contenta em marcar o ritmo, sem preocupação com a melodia.

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Conselho a jovem escritor: "Quando você  encontrar no que escreveu um trecho que lhe pareça particularmente brilhante, risque-o." A razão disso é cristalina: o leitor comum só quer saber quem casou com quem, ou nos momentos mais dramáticos, quem matou quem. Já passou (e não volta mais) o tempo de escrita enfeitada.

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Cultura exige constância, aprofundamento, aplicação. Ninguém sobrevive nem do prestígio nem do saber alheios. Cultura é o que fica para cada qual,  depois que tudo se esqueceu, inclusive desafeições. Cultura e ressentimento não se dão bem.

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Há pianistas tão ruins, que ao invés de acertarem o banquinho, puxam o piano. Não dedilham, digitam. Quer dizer: para surgir um só artista que alcance renome, milhares de candidatos ficaram pelo caminho,  apenas medíocres, esforçados. Isso vale para violinistas.   E violoncelistas, trombonistas...

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Levando-se em conta que não é comum no pensamento filosófico a presença da frase clara e cristalina, faz sentido dizer-se que a  clareza é a gentileza do filósofo. Poucos são gentis. Ou por outro ângulo: não é da índole do filósofo  explicar pedagogicamente suas ideias. Quem quiser que queime as pestanas. Um pouco de obscuridade pode até  aprofundar rasos  pensamentos.

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Levou anos e anos para descobrir que não sabia escrever, mas aí já não podia parar - tinha ficado famoso demais e em tantas línguas. Até foi levantada a hipótese de que a sorte dele era ter excelentes tradutores que tiram ouro de seus obscuros pensamentos.

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Maneira elegante de traduzir a frase popular comer abobrinha e arrotar peru: "Estou morrendo acima de minhas posses" -  palavras finais de Oscar Wilde, aquele poeta e dramaturgo irlandês que pensou sair  ileso ao  mostrar-se por inteiro fora do armário. O mundo ainda não estava preparado para tanto exibicionismo e meteu-o na cadeia. Em paga intelectual, ele escreveu a triste "Balada do cárcere de Reading". Se cada um com as mesmas tendências  tivesse talento para tanto, a face do mundo estaria mudada para melhor, muito melhor.

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O xadrez propicia uma espécie de inteligência que serve só para jogar xadrez. Baralho também. Palavras cruzadas idem. O que tem validade de amplo espectro é a leitura, uma rara atividade que exige dedicação exclusiva. Ninguém consegue, com real proveito,  ler e fazer uma outra coisa. Deve ser por essa falta de concentração que cada vez se lê menos.

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Objetivo supremo da medicina ainda nem sequer projetado: tornar contagiosa a saúde.

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Fiquei impressionadíssimo com os cisnes que vi no lago quadrado do Itamaraty, Rio de Janeiro. Eles disputavam em imponência com as palmeiras imperiais.

Cisnes... Os cisnes cantam antes de morrer. Muitos dos nossos cantores deveriam morrer antes de cantar.

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 Não demorou muito para  que Dilma Rousseff  descobrisse  que metade de seus ministros não é capaz de nada. E a  outra metade, capaz de tudo! (Quem aplicou pela primeira vez  a essência desse pensamento foi Castelo Branco.)

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 Memória: as boas lembranças duram muito; as más duram ainda mais.

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 Quem sabe faz. Quem não sabe põe defeito,  torce o nariz,  comenta com ares de superior entendimento.. Por isso a amarga verdade contida no conselho dado pelo dançarino russo Nureyev a um jovem que gostaria de seguir a carreira de dançarino, mas achava que não levava jeito: "Tente a crítica da dança"...

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 Ramón Gómez de la Sierna descobriu que O pensador de Rodin é um enxadrista a quem tiraram a mesa com o tabuleiro. Continuou absorto em seu próximo lance.

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 Resumo de um grande e milenar problema: ciência é o que a gente sabe; filosofia é o que a gente não sabe.

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 Quando em qualquer circunstância da vida o homem tem capacidade de projetar seu pensamento para amanhã, fica fácil entender que a esperança é a memória do futuro.

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 Se o sujeito não se educar para saber apreciar música lírica, ficará sempre com a impressão de  que  ópera é a situação teatral em que alguém é apunhalado pelas costas e, ao invés de sangrar, canta.

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 Tem-se testemunhado tanta sabedoria nascida de pessoas de  pouca vivência livresca. Por isso é muito verdadeira a frase: Cada homem que morre é uma biblioteca que se extingue. Cada homem é autor, ao menos,  do livro de sua vida.

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 Uma bela arquitetura dá sempre belas ruínas. Basta ver a força evocativa das cidades históricas. Isso se aplica também a pessoas de certa idade, mas não de idade certa.

 

25/05/2013
emelauria@uol.com.br

 

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