Um livro multissecular e intrigante

 
Ilustração da contracapa, de Cristiana Barretto e Flávia Caesar.

 

A lei de Murphy, aquela que garante que o pão sempre cai ao chão pelo lado da manteiga, tem plena validade nas bibliotecas: você procura um livro e não o acha. Tempos depois, ele aparece quando você já se pôs à cata de outro. Foi o que se deu a semana passada, vindo a  ser surpresa das mais agradáveis. É que, assim sem mais nem menos, sem ser querido, emergiu ao alcance dos olhos e das mãos um belíssimo livro, de capa dura e sobrecapa com ilustração, impressão caprichada, formato elegante.

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Nem um sinal de propriedade. Eu nunca deixo de colocar meu nome nos meus, além de lançar uma rubrica particular em duas páginas de minha permanente escolha. Não havia nem minha assinatura nem a tal rubrica; portanto, o livro não era meu, ao menos que eu soubesse.

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Lá estava, íntegro na sua beleza, o Rubaiyat,  de Omar Khayyam, poeta persa que viveu presumivelmente entre 1050 e 1123. Tradutor, o grande poeta modernista brasileiro Manuel Bandeira (1866-1968), edição Ediouro, Rio de Janeiro, 2001. Bandeira valeu-se do texto francês de Franz Toussaint.

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O Rubaiyat , em meu tempo de colegial e frequentador da Biblioteca Municipal que funcionava onde é hoje o Museu Rio-Pardense, era guardado sob chave pelo discreto bibliotecário Arnaldo Leal, que não o ia entregando a qualquer leitor, porque a obra era considerada imprópria a menores, aqueles poucos menores que se interessavam por livros, já naqueles idos. O fato é que o li, tendo uns quinze ou dezesseis anos e disso me ficou longínqua impressão de um autor que gostava muito mais de beber vinho, de amar, do que de trabalhar.

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Omar Khayyam, filho de um fabricante de tendas, mas ele próprio importante astrônomo, matemático e pensador, chegou até nós apenas como poeta sobre cujo texto foram cometidas enormes traições de tradução, mesmo porque o persa nunca deveu ter muitos cultores no mundo ocidental. O título de seu livro quer dizer quadras na língua original. De fato, Bandeira colocou em português da melhor qualidade cento e setenta quadras, em que procurou muito mais resguardar o sentido das palavras do que o formato da versificação.

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Difícil a filosofia de vida do poeta, que teve grande parte de seu sucesso na Europa ligada ao que representou como oposição às convenções, à afetação moralista que caracterizou a era vitoriana, no século XIX, época em que sua obra foi descoberta, traduzida e divulgada.

Khayyam  é antes de tudo um agnóstico, que nada nega e nada afirma.

Para ele o melhor que o homem pode fazer é contentar-se em saber que tudo é mistério – a criação do mundo e a nossa, o destino do mundo e o nosso. Por mais que viva, criatura humana alguma elucidará um só dos enigmas do universo. Por isso, o homem deve ser imediatista, gozar o momento que passa, não se preocupar nem com passado nem com o futuro: o passado é um cadáver que se deve enterrar; o futuro é indevassável. Se os homens falam de um paraíso depois da morte, é bem possível que ele não exista. Portanto, cada um que crie um paraíso para seu gozo na Terra.

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Esse paraíso seria a sombra de uma árvore, vinho, os sons do alaúde, rosas, canções, uma bonita mulher de brancos seios. E melhor será evitar amá-la. Melhor ainda se ela for incapaz de amar.

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Seu hedonismo combinou muito bem com o estado de espírito do Ocidente oitocentista, de modo que o obscuro poeta persa de mais de seiscentos anos de publicação original tornou-se um dos autores mais populares do mundo, sobrevivendo com igual galhardia ao passar dos anos e às desastrosas traduções.

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É de se esperar que esta poesia, simples e intemporal, encontre leitores mesmo nesta nossa época de eletrônica e globalização, porque guarda em si algo intrigante e misterioso. Foi o que senti ao fim da releitura de suas cento e poucas páginas de rarefeito  texto.

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Transcrevo algumas frases do livrinho, suprimindo, por economia de espaço, a feição de versos:

 ·    Os doutores  e os sábios mais ilustres caminharam nas trevas da  ignorância. O que não impediu que em vida fossem tidos por luminares de  seu tempo. Que fizeram? Pronunciaram algumas frases confusas e depois adormeceram para toda a eternidade.

·    Ninguém pode compreender o que é mistério, ninguém pode ver o que se esconde debaixo das aparências. Nossas casas, salvo a última – a terra – são provisórias. Amigo, bebe o teu vinho! Trégua às palavras supérfluas!

·     “Eu sou a maravilha do mundo”, a rosa disse. “Que perfumista ousara expor-me  ao sofrimento?” Um rouxinol cantou: “Um dia de ventura pode ser que prepare todo um ano de lágrimas.”

·    Se o mundo é uma miragem, homem, por que desesperas e incessantemente lembras tua mísera condição? Entrega pois a tua alma às fantasias das horas. O teu destino está escrito. Nada poderá mudá-lo.

·    Uma vez que se ignora o que é que nos reserva o dia de amanhã, busca ser feliz hoje. Vai sentar-te  ao luar e bebe. Pois talvez não vivas mais quando amanhã voltar a lua.

·    Nada mais me interessa. Ergue-te, traz-me vinho! Amiga, esta noite tua boca amorável é a mais bela rosa do Universo. Vinho! Vinho vermelho como tuas faces. E que meus remorsos sejam leves, leves, tão leves como os cachos dos teus cabelos!

·   A viração da primavera refresca as pétalas das rosas, e na sombra azul do jardim beija as faces da minha amada. Apesar da felicidade que gozamos outrora, esqueço o passado. A doçura de hoje é, querida, tão imperiosa!

·   Alaúdes, perfumes, copas, lábios, cabelos, grandes olhos: brinquedos que o Tempo destrói dia a dia –  meros brinquedos! Austeridade, solitude, meditação, prece, renúncia: cinzas que o Tempo esmaga e espalha a seu bel-prazer – tudo cinzas!

Bonito e triste, não é mesmo?

 

20/04/2013
emelauria@uol.com.br

 

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