Variações em torno da linguagem

 

1- Primeira visita da terça-feira

 Com o seu  infundado receio de estar incomodando, recebo o telefonema de que ele viria visitar-me. Espero-o feliz da vida, porque, afinal, é um ex-aluno, um colega, um amigo vitorioso que está em rápida passagem pela terrinha.

Antônio Fábio Fornazaro me aparece com a finura e o respeito de sempre, como se os  anos  não o tivessem feito bem-sucedido em longínquas terras,

É daquela rarefeita espécie de alunos de outros tempos que têm pelos antigos professores um quase temor reverencial, mal percebendo como ficamos orgulhosos de seus feitos, de suas conquistas ao longo de décadas. Discreto como sempre, permite-se falar um pouco sobre Marina, ele que acompanhara de longe sua rápida doença e que até tivera o belo gesto de acender-lhe uma vela votiva numa igreja de Londres.

Fala um pouco de si mesmo, de sua complicada atividade de redator em português da Organização Internacional do Café, que lhe absorve todas as horas. Conheço suas anotações sobre a evolução da língua portuguesa de aquém e de além-mar, porque Fornazaro vai com mais frequência  a Portugal do que vem ao Brasil. O que ele observa e anota a respeito de nosso idioma, de particularidades idiomáticas, das más influências que vem sofrendo, especialmente na sintaxe, daria uma bela tese de pós-doutorado.

Ah, o seu receio de incomodar. Ele mal sabe como sua presença é amável, agradável, digna de ser esticada por uma tarde toda.

Hospedado num hotel, ainda assim  mal tem tempo de visitar as pessoas de suas relações. Continua trabalhando para a OIC daqui mesmo, valendo-se do computador que o põe em contato com o mundo, brigando com as palavras, mal rompe a  manhã, na drummondiana  frase.

Sabe ele muito bem como são essas escapadas de raro em raro, na tentativa de conseguir manter amarradas as múltiplas pontas da infância e da juventude, tendendo sempre  a romper-se com os eventos de uma vida com outras preocupações, outras focalizações. E, a cada retorno à terrinha, o inevitável conhecimento dos estragos que o decurso do tempo faz em tantas pessoas de que ele conserva gentis lembranças.

 

2- Entendendo as novas regras

Estas novas regras de grafia e acentuação parecem estar caminhando para uma unanimidade contra.

Leio, um tanto surpreso, uma nota de Opiniões, deste nosso DEMOCRATA da semana passada, em que um colaborador  se confessa incomodado em não acentuar a forma plural têm. 

E há muita razão para esse incômodo, porque o tal acento não caiu nem cairá, mesmo que esse acordo luso-brasileiro consiga sobreviver a tanta oposição.

Tento esclarecer.

Existem três situações principais em que vocábulos perderam acento nesta recente proposta de unificação da grafia portuguesa:

a)      os portadores dos ditongos éi e ói, em palavras paroxítonas: i-dei-a, as-sem-blei-a, he-roi-co, es-toi-co...  Se a palavra for oxítona ou monossilábica, o acento permanece: he-rói, dói, fi-éis, réis. A pronúncia continua aberta em qualquer caso...

b)      os portadores  do hiato ô-o(s): voo(s), enjoo(s), perdoo, magoo, zoo(s);

c)      os portadores da sequência  -êem dos verbos dar, ler, crer e ver: deem, leem, creem, veem. Os verbos derivados desses também perderam o acento: releem, descreem, reveem,  desdeem.

Além desses três casos, a acentuação quase nada mudou. A dificuldade é que sempre os outros verbos deram problema.

Tomemos dois dos mais complicados, com seus derivados:

a)      Ter -  ele tem, eles têm.  Derivados têm acento agudo no singular e circunflexo no plural: ele detém, eles detêm; ele mantém, eles mantêm.

b)      Vir -      ele vem, eles vêm. Derivados têm acento agudo no singular e circunflexo no plural: convém, convêm (convir); desavém, desavêm (desavir); provém, provêm (provir) ...

Frases com o emprego destes perigosos verbos:

O que os olhos não veem  o coração não sente.

Há pessoas que não releem o que escrevem.

É preciso que as  crianças se deem as mãos.

Muitos descreem dos líderes atuais.

Poucos têm boas oportunidades de estudo

A temperatura mantém-se alta.

Os policiais detêm os suspeitos.

O pilar sustém o muro.

Estes medicamentos contêm substâncias tóxicas.

Será que o homem provém do macaco?

Essas propostas não nos convêm.

Difícil tudo isso? Que fazer... A piada que correu no tempo da guerra mundial era que os alemães enviavam suas mensagens mais secretas em português, e elas nunca foram decodificadas. Exageros à parte...

 

3- A segunda visita de terça-feira

Preocupadíssima senhora de minha antiga amizade me procura e me arranca a promessa formal de que tratarei do delicado assunto que ela me traz.

- Vocês, euclidianos, precisam fazer alguma coisa para que a televisão pare de tratar do  caso de adultério em que a mulher de Euclides da Cunha esteve envolvida. Acho um absurdo que se fale tanto dela e de seu amante, no centenário da morte,  quando o assunto deveria ser o escritor Euclides da Cunha, realçado o valor de Os Sertões. Deve ser muito constrangedor para os descendentes de Euclides verem e ouvirem tanta coisa a respeito de um fato íntimo da vida do casal! Isso não pode continuar.

Explico-lhe que não somos nós, euclidianos, que trazemos à tona o constrangedor assunto. Ao contrário, se dependesse de nós, penso que nada mais se falaria  sobre o triste episódio, mas o aspecto sensacionalista das notícias sempre agrada ao grande público e  não permite que as televisões ignorem o eterno prato cheio do tema escabroso e sangrento. Minha visitante, porém, é irredutível e insiste em que devemos botar a boca no mundo.

Então, daqui deste meu pequeno pedestal, amplio  aos quatro cantos o brado de uma sensível senhora e cumpro com o prometido:

- Parem com essa secular exploração da desgraça alheia!

 

4- Cópia deslavada

Tem já alguns anos  um estudo que me deu muito trabalho: “Favela – a trajetória de um vocábulo”.

Publiquei-o em jornais, enviei cópias para algumas pessoas, enderecei-o ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e à Academia Brasileira de Letras. Vi-o transcrito no Google.

Pois não é que na Wilkipedia, talvez o menos confiável setor de consultas da internet, aparece agora, em destaque, “A Favela, ontem e hoje”, em que seu autor – Francisco de Paula Melo Aguiar – copia grande parte de meu texto e se apossa dele sem a menor cerimônia?

Coisa feia para quem se proclama  doutor em Educação.

 

12/09/2009

(emelauria@uol.com.br)

 

Voltar