Nasce Uma Língua

 
Eu e Alberto Dines (do Observatório da Imprensa, TVE) na Casa Euclidiana, em agosto de 2009.

 

Por essa eu não esperava:

- Professor, como é que nasceu o português?

Apanhado de surpresa, pensando mesmo numa pegadinha,  fiz a pergunta que achei natural:

- Que português?

- A nossa língua...

Disse a meu consulente que o assunto era muito vasto para ser tratado assim a seco, por telefone, sem nenhum preparo. E prometi-lhe explanação por escrito, logo, logo.

Ele me pareceu não ter acreditado muito na minha promessa, mas aqui estou, cumprindo-a com o rigor possível em artigo de jornal e em espaço limitado.

Começo dizendo que o português é hoje uma das cinco línguas mais faladas do mundo e se espalha por todos os continentes: na Europa, Portugal; na América, Brasil; na África, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde. Na Ásia, sobrevive a duras penas em Macau e Goa, respectivamente cidades da China e da Índia; na Oceania é falada em Timor Leste, por grupos minoritários. Tem ao todo cerca de duzentos e cinquenta milhões  de falantes, sendo folgada maioria de brasileiros, mais de duzentos milhões.

O português pertence ao grupo das línguas românicas ou neolatinas, como o italiano, o francês, o espanhol, o romeno, o provençal. Teve sua origem no latim falado, introduzido na Península Ibérica por volta do século II antes de Cristo, como consequência das conquistas políticas do Império Romano. Originado no Lácio, região central da Itália, o latim, em sua feição dita vulgar, expandiu-se  por quase todo o mundo conhecido por causa do espírito de organização e da superioridade bélica, política e cultural de Roma.

Sob o ponto de vista dos acontecimentos sociais e sua repercussão, da expansão territorial e do contato com outras línguas, a história das línguas neolatinas viveu dois momentos fundamentais: a romanização, em que as forças da unificação predominam. E  as da  fragmentação, em que se observa a vitória da diversificação sobre a concentração. Uma força centrípeta tende à conservação, à unificação; outra força centrífuga provoca a inovação, a diversificação. Assim como a Península foi romanizada por causa do poderio de Roma, tempos depois, com o declínio do Império Romano, com a invasão dos bárbaros, com o desaparecimento  progressivo de um poder central, o latim vulgar foi assumindo aspectos distintos em cada região de sua vasta área de domínio e criando um falar intermediário, que ainda não era uma língua diferente, mas o prenúncio disso. Esse falar chama-se romanço ou romance. Assim, antes da concretização do português como língua autônoma, predominou na região conhecida como Lusitânia um romanço que lhe daria origem.

Por volta do século V de nossa era, a Península sofreu a invasão de povos bárbaros germanos  -- suevos, vândalos, alanos e visigodos, com o que se rompe de vez a unidade dos romanos. Num atestado inequívoco da superioridade da civilização romana, os povos bárbaros acabam se romanizando, com o cruzamento racial, com a adoção do Cristianismo como religião e com o uso do latim vulgar em substituição a seus rudes e incultos idiomas.

O romanço na Lusitânia  vigorou entre os séculos V e IX, quando então o português tem início como língua autônoma, produto da lenta degradação do latim vulgar e das influências dos povos germanos.

Acontecimento histórico de significativa expressão linguística foi a invasão da Península pelos muçulmanos, chamados mouros pelas populações ibéricas. Sua língua era o árabe e sua religião o Islamismo. Curiosamente, nenhuma das duas foi imposta nas terras militarmente conquistadas, de tal forma que o latim vulgar, na sua feição moçárabe, continuou sua progressão rumo à formação do português e do espanhol. Apesar dos quase oito séculos da presença árabe na Península, sua influência no campo da linguagem se limitou praticamente ao vocabulário (há cerca de oitocentas palavras de origem árabe no português) e ao modo de pronunciar determinados vocábulos. Não deixou maiores vestígios no cerne do idioma, que é sua sintaxe.

No século XII já se encontram documentos comprobatórios da existência de três significativos dialetos peninsulares: o galego-português, o catalão e o castelhano. A diferenciação  entre o galego e o português se deu com a formação do país Portugal, com capital em Lisboa. O território português firmou-se definitivamente na segunda metade do século XIII. Por esta época a língua portuguesa já apresentava sua produção literária, ainda cheia de galeguismos e de provençalismos e um tanto afastada da língua comum que vigorava entre o povo.

Com base na evolução da língua escrita foi possível considerar-se que até o século XV o português viveu sua fase arcaica. A partir daí a fase dita moderna se impõe, principalmente através das obras  de escritores da importância de Gil Vicente (o criador do teatro português) e de Luís Vaz de Camões, o maior poeta de todos os tempos, em nosso idioma.

Trazido para o Brasil  pelos  povoadores, o português  aqui teve de superar as línguas indígenas, em especial o tupi-guarani, antes de impor-se como idioma nacional. Baste lembrar-se que por volta de 1750, dois séculos e meio após o descobrimento do Brasil, os idiomas indígenas exerciam tão forte influência, que de cada quatro habitantes, um só se expressava em português.

O aumento da população de origem europeia e a  disseminação das escolas fizeram com que, mais vagarosamente do que era lícito supor, o português se impusesse como língua nacional, num dialeto chamado brasileiro pelos linguístas.

De notar-se, por fim, que apesar de tantas opiniões em sentido contrário, o nome da língua falada no País não é o brasileiro, mas sim o português. A base científica de se manter esta denominação está em que as modalidades linguísticas postas em uso em Portugal, nos países lusófonos da África e no Brasil são estruturalmente iguais, apesar das divergências de pronúncia, de vocabulário.

Segundo o os doutos, o que caracteriza a integridade de uma língua não é  o vocabulário ou a pronúncia, mas a identidade das chamadas palavras gramaticais: enquanto os artigos, os pronomes pessoais, relativos, indefinidos, as conjugações verbais, etc. forem as mesmas aqui, em Portugal e na África, a língua será a mesma, o português, com certa unidade na variedade.

 

11/07/2015
emelauria@uol.com.br

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