Saudades inúteis

 

 

Se você aí, de qualquer idade, lá vez por outra se pega pensando sobre a vida e abriga no fundinho da consciência a incômoda certeza de que quase nada vale a pena, saiba que você não está sozinho nessa triste comprovação. Um poeta que se desdobrou em quatro ou cinco outros, amenizou um pouco a dura verdade, escrevendo que tudo vale a pena, dependendo da grandeza da alma, que não pode ser pequena. Ah, bom.

Esse tipo de reflexão acompanha o homem desde sempre; só não toma conta de todos os momentos de seus dias e noites porque as pessoas precisam trabalhar para  o sustento pessoal e da família. Precisam amar. Precisam ficar sábias. Isso sem se levar em conta que a religião dá um consolo –  a esperança, que um poeta vesgo e fanhoso definiu como “ a divina mentira, que dá ao homem o dom de suportar o mundo”.

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Não está entendendo nada  do que escrevi até agora? Isso é o normal; ainda por esses dias fiquei sabendo que meu artigo esclarecedor da semana passada pouco esclareceu. Uma pessoa me disse que na casa dela houve até mesa-redonda (palavras textuais dela) a respeito da grande dúvida: afinal, em quem eu havia votado? No Aécio? Na Dilma? Atenta colega de faculdade me alerta que numa sala de exercícios físicos, a jovem advogada teimava, cheia de razões próprias, que eu havia escrito claramente: votei na Dilma...

Porque é sempre grande a possibilidade de ninguém se entender ou de entender o próximo, verdadeiramente próximo ou distante. Como explicitava outro poeta meio pessimista: de que adianta as duas cabeças estarem encostadas, se os pensamentos de cada um vagueiam em outras esferas? Antes assim. Já imaginou quantas cenas de ciúmes, quantas tragédias diárias se  cabeças mutuamente recostadas deixassem vazar pensamentos, desejos, verdades pessoais, angústias e decepções? Daí a sabedoria da resposta-padrão  que um dá ao outro quando perguntado:

- Em que você está pensando, meu bem?

- Em nada, meu amor.

Pois sim.

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Acho que foi o teatrólogo Samuel Beckett, paralítico no fim da vida, quem clamava aos céus:

- Que saudades das velhas perguntas e das velhas respostas!

Que coisa, não? Até há relativamente pouco tempo o mundo era assim, as pessoas não encontravam  armadilhas inconcebíveis, não caíam em constrangimentos vergonhosos. Na era vitoriana, por exemplo. Que mundo organizado! Nobre que fosse  nobre não trabalhava, só dava serviço para os necessitados.  Profissões bem estruturadas, filho de médico sabendo que ia ser médico; filho de operário sabendo que acompanharia as atividades do pai. E casamentos bem arranjados em conclaves familiares,  lugar certo para nascer, para viver e para morrer.

A própria rainha Vitória, que durou mais do que se podia imaginar, decretou, assim que enviuvou,  que nenhum rei que lhe sucedesse podia chamar-se Albert, porque o marido dela, o príncipe-consorte ( ou com sorte) merecera ser o detentor exclusivo do nome. O rei Jorge VI, pai da atual rainha da Inglaterra, tinha como primeiro da sua lista de dez ou doze nomes exatamente Albert, porque ninguém acreditava que um dia Bert (tratamento familiar) subisse ao trono. Afinal, seu irmão mais velho era o herdeiro. Mas esse irmão mais velho (estou com preguiça de pesquisar no Google) apaixonou-se por uma calejada norte-americana, duas vezes divorciada e dizem que com estágio de artes tântricas em centros de especialização do Oriente, esse irmão mais velho nem titubeou. Já que era impossível o rei casar com mulher divorciada, o jeito foi deixar de ser rei. Aí o pobre Albert viu o trono inglês lhe cair sobre a cabeça. Além de muito tímido, era gago. O resto, se você quiser saber, veja ou reveja o excelente filme  O discurso do rei.

Quanto ao sentido de tântrico, nada lhe direi. Procure no Google. Tudo se  procura e quase tudo se acha nele. Com algumas bobagens, às vezes.

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Meu amigo Feitosa, livreiro-ambulante que vem driblando todas as modernidades, deu-me curiosa explicação:

- Em outros tempos, família que se prezasse, que desejasse dar melhor instrução aos filhos, fazia grandes sacrifícios e comprava em suáveis prestações uma boa enciclopédia, ou a  Delta-Larousse ou a Barsa. Só os muito abonados  e de excelente nível cultural podiam aspirar a uma  Encyclopaedia Britannica, que custava uma nota preta. A praxe dos vendedores das nacionais era dar de presente uma luxuosa Bíblia a cada comprador. Hoje, nós vendemos só a Bíblia e oferecemos de graça as encalhadas enciclopédias que ninguém aceita...

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Da mesa em que digito, vejo os quatro caprichados volumes de tamanho gigante do Lello Universal, a  enciclopédia luso-brasileira que ilustrou gerações e também saciou curiosidades de meus filhos, de meus netos. Quem o comprou foi Marina, no comecinho dos anos cinquenta. Abrir qualquer página de qualquer dos quatro volumes será sempre motivo de saudades do perdido mundo de perguntas certas e de respostas certas. Não só saudades, mas também boas risadas, por causa de conceitos que não resistiram à passagem do tempo.

Que fim terão daqui a uns anos esses livrões que hoje entulham minha biblioteca? Por mais sentimentais e apegados que sejam alguns de meus herdeiros, onde encontrarão lugar não só para o Lello, mas para o Diccionario de Cândido de Figueiredo (dois volumes, de 1913); para a edição fac-similar do século XVII dos Sermões de Vieira, em dezessete volumes; para o Dom Quixote, quatro volumes encadernados em couro, presente de Honório de Sylos, que me disse confiar mais em mim do que nos seus filhos para o resguardo da preciosa obra?  Nada disso  será problema meu.

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E onde estão as velhas perguntas com as velhas respostas? Sumiram. Verdade que alguns teimam  em formular novas respostas para velhas perguntas, o que pouco resolve, porque fatores outros desequilibram o mundo: superpopulação, aumento da miséria (seja pelo terrorismo,  seja pelas mutações climáticas), morte de doutrinas políticas, recrudescimento do fundamentalismo religioso. Como pensar em democratizar povos que não vivem em estados, mas em tribos com milenares costumes? Como convencer filhos de árabes nascidos na Inglaterra ou na França que eles nada têm que se inscrever nas crescentes fileiras do perigoso Estado Islâmico? São perguntas sem boas respostas.

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Resposta final: votei no Aécio, juro.

08/11/2014
emelauria@uol.com.br

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