A última de sua classe

  
Sabadoyle, Rio, 1985:
 Rosaura de Escobar, Rodolpho Del Guerra, Márcio José Lauria,
Carlos Drummond de Andrade, Carmen Trovatto Maschietto e Joaquim Inojosa.

 

Foi o compadre José Affonso Corrêa Netto quem me alertou, num telefonema de São Paulo, no sábado passado, 31, da morte de Rosaura de Escobar, a filha remanescente de Francisco Escobar, amigo dileto de Euclides da Cunha.

Encontro no caderno “Cotidiano”, da Folha de S. Paulo do mesmo dia, o seu quase alegre necrológio, com certeza redigido por algum parente que a conhecia bem, tendo por ela amizade e admiração.

Transcrevo:

 

Rosaura de Escobar Ribeiro da Silva

(1914-2013)

Doce, bem-humorada e euclidiana Zazá

 A qualquer lugar que fosse, Rosaura de Escobar Ribeiro da Silva sempre levava um saco de balas que distribuía para todo o mundo. “Isto é para adoçar sua vida”, dizia. O bom humor era uma das principais características de Zazá, como carinhosamente a chamavam. Outra grande marca foi sua paixão por Euclides da Cunha, que foi muito amigo de seu pai. Francisco Escobar era prefeito  de São José do Rio Pardo (SP) na época em que o escritor lá viveu e onde deu vida a sua obra “Os Sertões”. Zazá tinha centenas de livros de Euclides da Cunha, alguns publicados em outras línguas, e também sobre ele, inclusive de pesquisadores estrangeiros. Também herdou cartas trocadas entre o pai e o ilustre escritor.

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E assim se vai a  remanescente de uma geração dos  que conviveram com outras pessoas que lidaram diretamente com Euclides. Integraram esse grupo seleto euclidianos ilustres como Oswaldo Galotti, Hersílio Ângelo, Vinício Rocha dos Santos, Honório de Sylos, Olímpio de Sousa Andrade e uns poucos outros.

Os de minha faixa etária muito aprendemos com eles.

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A constante correspondência entre Euclides e Escobar é das mais duradouras de que se tem notícia na história de nossa literatura.  Transcritas na Obra Completa de Euclides, 1ª edição da Aguilar de 1966 que tenho à mão,  há cartas de 17 de fevereiro de 1899 a 13 de abril de 1908, que abrangem, portanto, desde o período de residência em São José do Rio Pardo, até praticamente o final  de sua curta vida.

Rosaura sempre foi ciosa cuidadora  da valorização dessa sincera afinidade, com certeza a mais espontânea da vida de Euclides. Sobre esse tema da amizade e da epistolografia, diversas  vezes ela deu palestras nas Semanas Euclidianas de que participou, tendo  sempre ao lado a discretíssima  e sutil irmã mais idosa, Augusta, falecida há já alguns anos. Rosaura também adoçou a vida de muito maratonista, jogando balas nas salas de aula do Ciclo de Estudos com o mesmo desembaraço de Sílvio Santos distribuindo dinheiro no animado auditório de sua estação de TV...

O falecimento de Moisés Gicovate  fez cessar a vinda de sua mulher D. Zina  e como decorrência a presença das irmãs Escobar, todas companheiras de viagem e de atividades aqui em São José do Rio Pardo.

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Rosaura deve ter sentido que não houve unânime aprovação ao seu desejo, por fim acolhido pelo prefeito Celso Amato, de se dar ao espaço em torno da cabana histórica de Euclides o nome de Praça Francisco Escobar, como se pode ler ainda hoje numa discreta placa. Eu pessoalmente não acolhi a ideia, mesmo porque, juntamente com o vereador José Spina Filho, já havia apresentado sugestão (acatada) que deu à sala de sessões  da Câmara Municipal  o nome de Escobar, o doutíssimo Escobar, vereador, intendente, advogado provisionado, músico de valor. E principalmente o grande amigo de Euclides, a quem deu assistência de carinho e de cultura neste ermo do rio Pardo, conforme palavras do próprio Euclides. Além do mais, na parede da redoma que protege a cabana, há uma placa de público reconhecimento  ao maior colaborador local  de Euclides.

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Frequentadora de minha casa, juntamente  com Moisés, Ivo Vannuchi, Célio Pinheiro, Adelino Brandão, Dálvaro da Silva, Éverton de Paula, Manoel e Celinha, Dante Pianta, entre tantos, não era fácil o trato com Rosaura, espírito aberto e franco, que não admitia restrições à figura do pai, por quem nutriu pela vida toda a mais completa devoção filial. Lembro-me de seu azedo comentário a alguém que fez elogio ao escritor mineiro Mário Casasanta, autor de uma bem-intencionada biografia de Escobar, publicada em Belo Horizonte.  Para ela, o livro pouco refletia de toda a importância dele como homem culto e político atuante.

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Desse afável Mário Casasanta, conferencista numa remota Semana Euclidiana,  lembro duas coisas: haver adotado, em séries do antigo ginásio, um belo livro de leituras de sua autoria e de  um geral constrangimento causado por ele: não sei de quem a infeliz ideia, o fato é que se atribuiu a Casasanta a penosa incumbência  de levar consigo, corrigir e classificar as provas da Maratona Euclidiana do ano em que ele aqui proferiu sua  conferência.  Ao que constou à época, ele jamais devolveu as provas nem deu nenhuma explicação. Se isso for apenas lenda, eu me apressarei em ajudar a desfazer a triste versão de que tomei conhecimento há tanto tempo. Com a palavra a Casa de Cultura Euclides da Cunha.

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Li nos documentos históricos do nosso Grêmio Euclides da Cunha um telegrama de 1925 comunicando a não sei quem o falecimento do senador Francisco Escobar, ocorrido em Belo Horizonte.

De fato, mineiro de Jaguari (hoje Camanducaia), Escobar , saindo de São José do Rio Pardo, transferiu-se para Poços de Caldas, lá foi vereador, intendente municipal  e posteriormente eleito senador estadual. Sim, havia senadores estaduais, também!

Contou-me a própria Rosaura que a prefeitura de Poços de Caldas mandou erigir  um monumento fúnebre a Escobar e que ela, visitando a bela estância mineira décadas depois, notou o estado de abandono do local. Não teve dúvidas: venceu todas as barreiras burocráticas e levou os restos mortais do pai para o cemitério da Consolação, em São Paulo!

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Passando nós  rápidas férias em Monte Verde, pacífico e  gelado distrito de Camanducaia, minha mulher Marina precisou de assistência médica no modesto hospital local, onde foi muito bem atendida. O médico que cuidou dela  era o prefeito da cidade.

Como eu tivesse prestado atenção ao nome da praça central de Camanducaia, perguntei-lhe para início de prosa:

- Doutor, quem foi o senador Francisco Escobar?

O atencioso doutor  interrompeu o que fazia, pensou um pouco e me respondeu, um tanto encabulado:

- Sabe que não sei?

Rosaura lhe teria dado ricas informações por horas e horas.

 

07/09/2013
emelauria@uol.com.br

 

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