NOSSAS LEMBRANÇAS

  

 

Vi/ouvi num dos programas Roda Viva, da TV Cultura,   uma dessas repórteres vividas, seguras, versáteis e cheias de ideias como esta, tomada por  empréstimo a  Santa Teresa de Jesus: A imaginação é a louca da casa, o  que resume com perfeição o universo fascinante de Rosa Montero, a tal a repórter entrevistada.

Não deixam de ser interessantes algumas colocações suas sobre o ato de escrever:

... nós nos mentimos, nos imaginamos, nos enganamos. O que contamos hoje sobre a nossa infância não tem nada a ver com o que contaremos dentro de vinte anos. E o que você lembra da história  familiar costuma ser completamente diferente daquilo que seus irmãos lembram”.

Refletindo sobre esse trechinho,  cheguei a dar graças por não ter irmão mais ou menos contemporâneo meu. Minha única irmã é bem mais nova do que eu, de modo que posso ficar sossegado quanto à desabonadora possibilidade de alguém, num certo lance de minha meninice que terei contado com riqueza de detalhes e absoluta certeza de minha memória fotográfica, simplesmente me dizer, cara a cara:

- Olhe, o que você escreveu a respeito de nosso avô é pura imaginação sua. Estive lá, bem junto a você, e não vi nada, nadinha, do que você pôs em letra de fôrma. Ele tinha bem menos virtudes e bem mais defeitos do que você quis passar adiante. Era apenas um velho solitário e neurastênico que nem sabia o nome dos netos!

Não sei se tem cabimento, mas gostarei de encaixar aqui esta frase: Nós vivemos porque os outros dão testemunho disso. Daí o grande drama dos muito velhos, que perderam todos os seus referenciais, todos os seus testemunhos.  Pronto, está colocada.

Ora, se nos enganamos a respeito de nossas lembranças, podemos perfeitamente nos enganar sobre nós mesmos. Ou, como reflete bem Rosa Montero:

“De maneira que nós inventamos nossas lembranças, o que é o mesmo que dizer que nós inventamos a nós mesmos, porque nossa identidade reside na memória, no relato da nossa biografia. Portanto, poderíamos deduzir  que os seres humanos são, acima de tudo, romancistas, autores de um romance único cuja escrita dura toda a existência e no qual assumimos o papel de protagonistas. É uma escrita, naturalmente, sem texto físico, mas qualquer narrador profissional sabe que se escreve sobretudo dentro da cabeça.”

Pura verdade. A mágoa de quem escreve está em que o imaginado é sempre muito melhor do que o redigido. Ah, o indizível, o inefável!

E assim, com certa simplicidade e até falta de malícia, a espanholinha imaginosa adentra  notáveis questões de teoria literária, como a relação entre ficção e realidade, entre a verdade e a verossimilhança, entre a criação do enredo e a capacidade humana de preencher lacunas em qualquer relato.

Ela não citou a frase que vou escrever em seguida, mas por certo concordaria com ela: não existe composição literária mais imaginosa do que a autobiografia . Ou com palavras mais elaboradas:  Assim como o nosso cão é aquele ser que só vê em nós o melhor que somos, um texto autobiográfico não é a expressão da verdade comprovável, mas a vida contada como o autor gostaria que ela tivesse sido... Faz sentido, não?  A louca da casa apronta estripulias das grossas...

 

MEU VELHO PROFESSOR

Recebo agora, nesta semana,  o livro de  Olavo Rubens Leonel Ferreira Nelson Pesciotta – Um educador valeparaibano. No vigor de seus noventa e três anos, Nelson saiu muito bem na foto, que reproduzo.

Está lá na página 67 o breve relato sobre sua passagem por São José do Rio Pardo: “(...) De lá ele se lembra particularmente de um aluno que teve, o Márcio José Lauria, depois professor universitário e (....) especialista na obra de Euclides da Cunha.

O professor Lauria tem estas recordações do professor Nelson: “(...) fui aluno dele em 1949 (d.C.!) no último ano de meu curso na Escola Normal Euclides da Cunha. Ele era professor titular de Sociologia, aqui permanecendo por pouco tempo. Foi chocante o contraste da modernidade, da jovialidade e do espírito democrático de Nelson, comparativamente à caturrice do antecessor. Ele conquistou a  simpatia dos alunos, claro que mais das alunas, porque era um jovem culto, simpático e solteiro. Um partidão, enfim, porque professor ganhava bem. (...) Em 2009, tive a grata surpresa de ser convidado por ele para ser o palestrante na cerimônia de instalação da Academia de Letras de Lorena, mais uma de suas iniciativas culturais de expressão.”

Quem se lembrará de Nelson Pesciotta entre nós? De qualquer modo, dedico esta notícia aos raros sobreviventes daquela nossa inesquecível turma: Nininha Rondinelli, Nicinha Navarro de Assis, Lourdinha Feijão, Benedicto de Araújo Netto e Guilherme Bianchin. Os outros trinta e tantos talvez estejam estudando a geologia do campo santo, na irônica frase de Machado de Assis.

 

07/05/2016
emelauria@uol.com.br

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