PEDIDOS IRRECUSÁVEIS

Quem, depois de certa idade, não deve ter vivido a contingência de receber um pedido de favor irrecusável, formulado por amigo ou parente querido?

Tenho exercido algumas vezes este papel a um tempo triste e honroso: alguém que, usando sabe-se lá que critérios subjetivos, me haja escolhido para realizar tal ou qual tarefa, por vezes até fácil, mas outras de complexidade inesperada.

Não faz muito, uma pessoa me procurou em casa e me falou num tom que daria a um terceiro ouvinte a perfeita idéia de que nós éramos íntimos de longa data. Pois não era essa a verdade: dele, o tal visitante inesperado, eu nem sabia o nome, conhecia-o ainda menos do que Machado de Assis disse a respeito de um eventual companheiro de trem de subúrbio –  de vista e de chapéu. De vista, sim, eu o conhecia,  mas de chapéu não. Lá estava o sujeito de seus cinqüenta anos, magro,  louro, pele queimada de sol, a calva tomando todo o centro da cabeça e as laterais ocupadas por longos fios, descuidados e amarelados.

Chegou humilde e me disse:

-- Olhe, o que vou pedir ao Sr. é coisa que se pede apenas a quem é digno de toda a confiança.

E me incumbiu de impossível intermediação – conseguir nada menos do que a volta para ele da mulher amada!

Contou-me alguma coisa daquele romance então desfeito, contra sua vontade.

Expliquei-lhe a dificuldade da situação, a falta de intimidade minha com qualquer um dos dois, mas tudo foi em vão.

-- Isso o Sr. não me pode negar. Não o Sr., em quem confio amplamente.

Com a cara mais desenxabida do mundo e levando em conta a insistência  do peticionário, prometi-lhe apenas que entraria em contato com a mulher que o rejeitava tão secamente e já me  parecia que de modo irrevogável.

Minha conversa telefônica com ela foi um exercício de pisar em ovos porque, se ela quisesse, às primeiras palavras me atalharia e argumentaria com toda a razão que eu não tinha o mínimo direito de interferir na vida dela, muito menos  na vida do cessante casal. Ao contrário, ela se mostrou afável, cordial e irredutível. A volta a uma situação anterior era apenas impensável, ela me deixava isso bem claro.

Até antes da hora marcada de  vir falar de novo comigo, lá estava ele apertando a campainha de minha casa e aparentando muito mais calma, muito maior controle.

Comecei a expor-lhe com o máximo cuidado os termos definitivos da recusa de  sua amada, mas aí foi ele que logo me interrompeu:

-- Está bem. O Sr. fez o que pôde. Eu sempre soube que não haveria volta, mas queria ouvir isso pela boca de outra pessoa.

E saiu rápido, depois de muito me agradecer. Saiu eu diria que aliviado, como quem estivesse dizendo a si mesmo que fizera tudo  a seu alcance para a reconciliação...

Mais recentemente o enamorado rejeitado passou por mim e mal me cumprimentou. Estava afinal restabelecida a nossa falta de relacionamento.

Pior incumbência me foi passada por telefone: uma voz chorosa e tristonha me comunicava de Campinas a morte violenta do marido, amigo meu do Grêmio Euclides da Cunha e da cooperativa dos funcionários públicos. E, bastante constrangida, continuava:

-- Olhe, nem sei como lhe pedir isso, mas ele teve há  dias a  premonição de sua própria morte e me passou uma lista de recomendações que de momento nem levei muito a sério. Entre elas estava esta, que ele me expôs com muitos pormenores. Quer ser enterrado em São José do Rio Pardo num velho túmulo da família, depois de  velado no Asilo Lar de Jesus. Isso eu consigo facilmente, mesmo porque ele é muito querido dos dirigentes daquele abrigo de velhos. O difícil é o mais que ele pede: durante todo o tempo do velório, quer que sejam ouvidas suas músicas favoritas,  as sinfonias de Beethoven...

Fez-se um breve silêncio que eu respeitei, como que dando fôlego à formulação do  restante do pedido.

-- E ele disse mais. Que qualquer dificuldade que eu encontrasse no atendimento de seu ato de vontade, eu deveria falar diretamente com você, porque você  com certeza lhe daria  solução. É o que lhe peço agora, um tanto sem jeito...

As sinfonias de Beethoven em si não eram problema, eu as tinha em boas gravações de LPs. (Estava-se numa época em que nem se cogitava da existência de CDs.) O difícil seria a instalação do aparelhamento sonoro, mas meu filho mais velho, que havia voltado a casa num período de reclusão destinada ao estudo para prestação de concurso de ingresso no Ministério Público, logo se movimentou, apto a aplicar o que aprendera na boa Escola Eletrotécnica de Mococa.

Pusemos todas as tralhas em meu carro: meu filho não só cuidou da instalação do equipamento sonoro como ainda se prontificou a tomar conta da continuidade da apresentação das nove sinfonias.

Houve quem estranhasse tanta musicalidade em velório de pessoa assassinada num desses injustificados atos da barbárie urbana, mas em pouco tempo aqueles poderosos acordes, ouvidos em baixo volume, como que se ajustaram ao ambiente, assim que os circunstantes tomaram conhecimento de  que se tratava da satisfação de uma das últimas vontades do morto.

Cumpri ainda, com maior ou menor êxito, outras incumbências estranhas que amigos ou parentes me deram. Algumas até dignas de relato, dada a peculiaridade ou originalidade delas. Mais inesperadas ainda foram certas  formas de reconhecimento concreto que recebi como inesperada paga. Mas em torno de sua maioria, ainda paira aquela discrição que se faz necessária, por se referir a pessoas  jovens ou a fatos muito recentes.

De minha parte, conscientemente, ainda não incumbi ninguém de me satisfazer vontades em vida ou póstumas. Digo conscientemente, porque de forma indireta ou velada também eu, como tantos de nós, devo ter deixado escapar o desejo de ver realizado este ou aquele pequeno ou grande obséquio.

 

05/04/2008
(emelauria@uol.com.br)

 

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