Ainda é tempo?

 
Paisagem urbana.

 

Não é de hoje que preocupa os estudiosos uma espécie de inconsequente volubilidade de nosso povo, que tem critérios muito particulares em seu modo de avaliar causas e efeitos, em não traduzir por ações corajosas o que o pensamento chega a aceitar e até a desejar.

As manifestações de rua, iniciadas no ano passado, deram a otimista impressão de algo estar mudando no comportamento do brasileiro. As ações posteriores a isso mostram, para decepção de tantos, que nem tudo mudou de verdade, como se esperava.

Muitos já se debruçaram sobre o problema de estabelecerem-se os traços do que se poderia chamar o caráter nacional. Isso vem de longe, desde a época colonial, com as visões díspares de viajantes e de catequistas a respeito dos habitantes da terra recém-descoberta; essas interpretações suportaram análises das mais fantasiosas que acabaram dando o cientificismo de Sílvio Romero, a originalidade das teses de Euclides da Cunha e as preocupações de tantos outros autores do quilate de Nina Rodrigues, Manuel Bonfim, Gilberto Freire, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda.

Dante Moreira Leite, com seu precioso O caráter nacional brasileiro (Unesp Editora, 6.ª edição, 2003), resume o andamento da questão e afirma que as ideologias existentes não representam  a autêntica tomada de consciência de uma nação, mas obstáculos para que um povo se torne livre de preconceitos.

Apesar da conclusão pessimista desse grande psicólogo social (professor universitário e euclidiano entusiasmado, morto em 1976,  aos quarenta e nove anos, num banal acidente ocorrido em Araraquara), um dos livros por ele analisados em profundidade, Raízes do Brasil,  com seus quase oitenta  anos, ostenta uma atualidade que nos faz ver como mudanças radicais no Brasil, quando ocorrem, são de uma lentidão de exasperar. Isso num mundo que tem pressa, em que a tecnologia avança a passos de gigante e em que os povos mais educados se distanciam daqueles que mal conseguem vencer o analfabetismo e se contentam com uma educação popular de ínfima categoria.

Foi em 1936 que veio a lume Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, com esta frase inaugural: “Herdeiros de uma cultura transplantada, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”. Tenho dele um exemplar da quarta edição, de 1963, revista pelo autor e integrante de uma “Biblioteca Básica Brasileira”, composta por dez títulos escolhidos a dedo pela Editora da Universidade de Brasília. Nessa “Biblioteca” não poderia, mesmo, faltar Os sertões.

Em 2006 saiu, pela Companhia das Letras, uma edição comemorativa de Raízes, enriquecida de artigos de uma dezena de estudiosos, além de vasto material iconográfico.

Talvez o primeiro que tivesse usado num rigoroso sentido psicossocial a palavra “caráter” tenha sido Mário de Andrade em Macunaíma (1928). Como mito, como símbolo do inconsciente coletivo, este herói ameríndio metamorfoseia-se segundo o sabor da imaginação popular, não tendo, por isso, um caráter definido. Todas as peripécias por que passa camaleonicamente  Macunaíma, dão a ele um caráter que se modifica de uma página para a outra, o que o torna um herói sem caráter... O ator Grande Otelo representou-o com perfeição no filme homônimo do livro.

Volto a Raízes do Brasil. Sérgio Buarque de Holanda arma uma nova metodologia dos opostos, pares que se interpenetram e se modificam, formando retratos permanentemente alterados: rural e urbano, trabalho e aventura, norma impessoal e impulso afetivo, método e capricho... Daí repontam o personalismo, a frouxidão das instituições, a falta de coesão social, tudo resultado de uma hierarquia ibérica, em que as relações pessoais valem mais do que as relações públicas. Com isso, a valorização ao culto da personalidade e da aventura pessoal e o pouco apego às instituições formais... Apenas grifo esta frase, merecedora de profundíssima reflexão, muito oportuna no momento que vivemos e de consequências inimagináveis em nosso futuro próximo e remoto.

Outro tópico estudado com muita perspicácia por Sérgio Buarque de Holanda é sua observação sobre o regionalismo, concebido como mais um obstáculo à democracia no País. Já então, os partidos políticos não tinham nenhum significado nacional, não passando de meras somas de lideranças locais, representadas à época pelos fazendeiros, detentores do poder decisório de preencher os cargos públicos de conformidade apenas com seus interesses mais imediatos. O fenômeno ainda é visível nos dias de hoje, desaparecida nas regiões industrializadas a figura do líder agrário, substituído por outros chefes originalmente pobres, mas com tentador acesso ao dinheiro. Não perdeu de todo a atualidade esta observação de Sérgio: “A família patriarcal fornece o grande modelo por onde se hão de calcar, na vida política, as relações entre governantes e governados”. Trata-se, apenas, de encaixar nela, de forma adequada, quem é o patriarca, quem está ocupando o lugar antes destinado ao coronel. Daí a verdade contida nesta outra assertiva: “Enquanto perdurarem intactos e poderosos os padrões econômicos e sociais  herdados da era colonial, (...) as transformações mais ousadas serão superficiais e artificiosas”. Disso resultou a aceitação de um modelo intimista, animador do patrimonialismo que, em última instância, redundou na negação do papel do Estado como árbitro entre grupos sociais, na baixa politização do povo e na  exaltação das relações pessoais, com todas as formas do compadrio.  Eu sei bem por que estou pensando na força eleitoral das muitas benesses a que os governos acostumaram integrantes de classes sociais menos favorecidas e no papel   substitutivo exercido por facções criminosas organizadíssimas, que ditam o modo de viver de tantas comunidades desassistidas pelo poder público.

Nenhuma das expressões postas em circulação por Sérgio Buarque de Holanda no seu Raízes do Brasil teve o sentido mais deturpado do que homem cordial. A uma primeira leitura, estaria sendo reconhecido e valorizado um traço do caráter nacional brasileiro – a tendência à hospitalidade, à lhaneza do trato, ao desejo de viver em concórdia. Nada disso condiz. O que o historiador quis foi desfazer a pretensa ideia de inata civilidade e polidez de nossa gente. Teve por objetivo, isto sim, evidenciar a impossibilidade do povo brasileiro de lidar bem com questões que se afastem da esfera pessoal, porque a sua tendência natural é fugir ao formalismo e às convenções sociais. Ora, a submissão ao formalismo (mormente o jurídico) e o respeito às convenções sociais são, em qualquer país civilizado, a certeza  do primado da lei e do harmonioso convívio entre as pessoas. Nossas cordialidades são, na verdade, diferentes formas de expressão do “jeitinho”, como a dilatação da esfera íntima e biográfica em detrimento da presença do Estado; o desconhecimento de qualquer convívio que não seja ditado por uma ética de fundo emotivo, o horror às distâncias sociais. E assim, essa cordialidade interesseira resistiu ao colonialismo, à escravidão, ao clientelismo, à urbanização. E resistirá, sem dúvida, em tantas outras formas de se tirar proveito do aparelho do Estado em benefício pessoal ou grupal.

Fica em muitos de nós a triste impressão de que Euclides da Cunha não avaliou toda a extensão e profundidade de uma de suas mais repetidas frases: “Estamos condenados à civilização: ou progredimos ou desaparecemos”. Progredir, no caso, significará promover a efetiva elevação social através do único veículo capaz de realizar tarefa de tamanha magnitude: a educação formadora da cidadania. Está difícil, muito difícil.

 

03/05/2014
emelauria@uol.com.br

 

Voltar